quarta-feira, 17 de setembro de 2014
cartas de marie eau d´alac
CARTAS DE MARIE EAU D´ALAC
QUERIDO AMIGO,IRMÃO,PAI
Esta é a minha terceira carta.Mandei as duas primeiras onde falava de mim mesma e de assuntos relacionados com a natureza do meu nascimento e de tudo aquilo que eu queria saber dado que não chegaste a esclarecer os propósitos da minha criação e da minha transformação.Sou hoje uma mulher adulta, responsável, fiel aos meus ideais, fiel á minha missão. Mas permanecem dentro de mim,dúvidas, que pretendo apagar, porque tornam-se um peso insuportável.O que disseste de mim?Que tiveste há um tempo atrás,um sonho, que tudo começou a partir de um sonho, que precisavas dividir-te em diferentes personagens porque era tua vontade ultrapassar um desafio importante em toda a tua vida, criares outros eus, inventares pessoas distintas de ti como autor, fazeres de nós outros tantos seres com um rosto e um corpo alheios, separados de ti.Criaste o Schuman ,deste uma vida própria,um tempo e um espaço fora da tua realidade, vestiste o Schuman de aventureiro intrépido, corajoso.Algo frio e por vezes, amargo e ao mesmo tempo, uma figura terna e apaixonada.Por certo terás retirado de ti mesmo, algumas das características que são a sua identidade.E depois pegas neste personagem e colocas um cenário de ficção, fazes ele viajar no futuro como tradutor de línguas alienígenas, como representante da Terra nas “Galáxias Unidas”.Fazes o Schuman percorrer uma estrada sem retorno, ao longo do universo, para além do desconhecido, tudo em busca de um livro.O curioso é aquilo que não dizes, aquilo que ele sente quando lhe determinas esse destino.Não se adivinha uma só queixa, ele parece estar disposto a essa empresa, arriscando a pele a qualquer momento, perdendo o norte e a própria vida num planeta obscuro, eliminado por uma arma ou paralizado por uma bateria num recanto perdido no nenhures dentro da imensidão incomensurável.Ele parece gostar do papel que representa e assume o risco, com uma subtil vaidade.
Depois inventaste outro ser.Eu.Com uma configuração análoga, aparentemente desprovida de ti mesmo, já que deste a entender que sou, além de personagem, um heterónimo.Adivinho o prazer que sentiste, que te inundou física e espiritualmente, ao inventares o teu primeiro heterónimo, definires a partir de uma boneca de porcelana, um eu tão impossivelmente quase real, quase outro ser humano.Admito com uma certa admiração, a jogada inteligente, para conseguir explicar como me torno um ser de carne e osso, um ser humano que, sabemos ambos, não sou.Falo das Pedras mágicas, provenientes de Zaaar(um mundo que inventaste).Elas são o instrumento da minha transformação.Dás a essas pedras o poder de reconstituir um conjunto de células e átomos e um complexo de ADN, inseridos num objecto inerte, um organismo isento de vida num ser vivo, inteligente, com memória, com reflexos, com emoções.EU.Acredito que foi e ainda é, um desafio brutal, quase metafísico da tua parte congeminares a minha saída para a luz do dia.Fazes com que eu nasça em Paris, numa data imprecisa(este pormenor, devias desenvolver e o lugar onde nasci é uma lacuna imperdoável)e dás a mim mesma um corpo de mulher aí pelos vintes, a chegar aos trinta, cabelos escuros, uma cara redonda, olhos de um castanho vandyke, um corpo atirado para o forte, sem indícios de gordura.Programaste(ou introduziste)uma mulher culta, afável, de gestos suaves e andar elegante e donde vem tudo isso senão de ti mesmo ou da soma de coisas que quiseste minhas a partir de traços, vestígios de todas as mulheres que conheceste na tua vida?Ou, posso atrever-me, de algumas personagens reais, que te dizem qualquer coisa ou que te fascinam, uma voz(a voz da Ingrid Bergman), um certo jeito no olhar as pessoas(talvez alguém que amas ou já amaste), a forma do queixo…E porque me deste este nome, MARIE EAU D´ALAC?A conotação é implícita? O facto de teres feito que eu nascesse em Paris é suficiente?ou isso tem a ver com alguma ilusão a que te prendes, de um filme, um diálogo num livro que ficou marcado na memória, ou uma sequência de movimentos num passado distante?se calhar foi tudo isto junto, um somatório de experiências vividas e outras que terás desejado viver.Peço desculpa o alongar da minha missiva, era importante, vital, fazer esta introdução, é que preciso que tires um peso de mim, que não tem a ver comigo, é sobre a Yasmin.Desejo que compreendas aquilo que vem perturbando o meu descanso, a minha alma dói.Ela está longe.Incumbiste o grupo naquela missão dantesca, fatal,na busca de um livro.Para servir de pretexto no enredo do teu próprio livro.Creio que a Yasmin levará um certo tempo a perdoar-te.A ela já era difícil suportar a dúvida , porque era apenas uma boneca de porcelana como eu, ainda por cima não lhe dás tempo para se conhecer e envias um ser frágil, consciente contudo frágil, numa missão hostil, duvidosa e destruidora.Sim,porque até nem tu tinhas a certeza do desfecho.Era uma questão de ir vogando ao sabor da imaginação.Faltavam determinados elementos de consulta, escasseavam as bases com as quais se determina uma narração coerente, simples, genuína.Por exemplo, eles chegam a um sistema solar na periferia de uma galáxia a 80 anos-luz , distante da via láctea.Onde fica essa galáxia,em que quadrante do céu? Quais as características do planeta?a sua amplitude, a constituição geológica?Há pormenores a que um escritor não pode fugir.Embora isto seja tudo teu, deves ter cuidado.Devias proteger os personagens e encaixá-los numa história concisa e mais humana.Não é só a aventura, o enredo, tens de trabalhar o factor humano.Perdoa-me este desabafo de “filha”.Aceitarás as minhas críticas como decerto aceitas todo o meu carinho e admiração.Portanto , tendo dito isto, vamos ao que interessa.Saí de Roma há cinco dias.Viajei na minha bolha do tempo e quero saber onde se encontra a minha irmã.Sei que é pedir-te demais, mas preciso absolutamente revê-la, conversarmos e conhecer melhor aquilo que destinaste á yasmin, tanto em personalidade como no rumo da vida.Estarás disposto a alterar os capítulos finais, afim de sairmos vivas, inteiras e porventuras felizes?Ou já desenhaste um futuro sombrio, indefinido e triste para cada uma de nós?é que ainda falta falar da nossa AKIKO.Por agora me despeço não sem acrescentar, que tomo-me nas tuas mãos e no teu coração.
Tua sempre MARIE
P.S.Tenho outra coisa.gostava que me enviasses,se tal for possível,uma gravação da deutsch gramophone da peça do Mahler:das liede von der erde,que eu aprecio e me ajuda a relaxar.aqui em Praga(1865),não é possível encontrar.Percebes a razão.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário