sábado, 23 de fevereiro de 2013

O EPISÓDIO OEIRAS-ROMA by JOÃO PAULO CALADO
A minha obra começou assim.Com um acontecimento que não sei explicar.Um fim de tarde na esplanada da marina de Oeiras.Estamos a gozar um momento de descanso com o cenário dos iates á nossa frente.Dá sempre a impressão de que nos movemos num ancoradouro ou no cais de um porto numa cidade estrangeira.Pedi um scotch.Puro.O meu ritual é sorver devagar,saborear a modos de construir um filme sem um fim próximo.Ela preferiu um irish coffee.A entornar.Para acompanhar,uma salada de queijo.Eu,por uma questão de hábito,trouxera um caderno de linhas.Manias.Fiz bem porque,olhando para trás,serviu-me de memória,algo parecido com a minha “reportagem do exterior”.Foi isso e outra coisa.Vamos admitir que criei nesse dia de muitos eventos e surpresas,umas a seguir ás outras,o universo de toda a minha obra.Como referi,estava a beber o meu scotch enquanto falávamos dos nossos projectos.A pintura,viagens,exposições.Lembro-me de ter sugerido mudar o meu estilo,usar um fundo cromático mais quente,e a ela,de libertar-se,procurando novas texturas.Não sei quanto tempo ficámos ali.Recordo-me que passados alguns instantes(tinha o meu copo meio cheio ainda),fiz um comentário sobre ter arrefecido e de olhar para o céu inundado de luzes.Una noite linda de primavera.Março.Sei, porque o meu irmão ia fazer anos no fim de semana.Ele convidou-nos a jantar.Só família.E a Manuela já tinha o blusão vestido.A memória desses momentos torna-se vaga quando vou a levantar-me da mesa para me dirijir ao café para comprar cigarros.Ela deu-me trocos para o maço dela e depois encontramo-nos ambos numa ruela escura.Há um candeeiro daqueles antigos,a petróleo,a luz insinua-se nos ângulos do pavimento e rasga o contorno das sombras.Ouvem-se vozes a pequena distância.Em cima,numa janela.vozes numa língua conhecida.Italiano.Depois uma mulher passa por nós com um gatinho na cabeça.A cantar.Eu posso gabar-me de ter uma imaginação quase ilimitada.Afianço que esta coisa toda,apanhou-me em cheio.La Dulce vita.Fellini.Tive vontade de dizer á Manuela, que,virando na esquina á nossa esquerda íamos certamente dar com a fonte Di Trevi.A Famosa,inesquecível cena da fonte.A Anita Ekberg a banhar-se,a convidar o Marcello a fazer o mesmo…E a dúvida deu-me um soco.Senti uma vertigem,um movimento dentro de mim punha a questão primordial.Como vim aqui parar?Numa explosão silenciosa quedo-me inseguro e terrivelmente frágil,agorafóbico,tentando ao mesmo tempo,transmitir alguma segurança á Manuela.Achei,no entanto,que ela parecia natural,e nada disto afectou.Estava calma e ainda por cima,falou que podíamos procurar um café.Nada dava a entender que tivesse sentido da maneira que eu senti.Não fez alusão ao lugar nem á súbita mudança.Quis certificar-me das horas.Roma fica a uma dezenas de milhares de quilómetros de Lisboa.Meu Deus,a minha cabeça dançava uma dança louca,um maellstrom de perguntas sem resposta.O tempo a brincar conosco?Um fenómeno tipo poltergeist que nos transporta assim sem mais nem menos para outro lugar e para outro dia,num passado distante 52 anos?A Manuela encaixou a coincidência.O filme foi rodado no ano em que nasci.Uma obcessão minha,crescente,tomou-me de assalto e catalizou uma decisão em toda a minha vida.Mas isto não ficou por aqui.Disse que a Anita se cruzou conosco,é verdade,contudo a nossa presença não perturbou o instante.Ela ia toda concentrada a caminho da fonte,a cantar,o Marcello Mastroiani a chamá-la e nós,tal qual dois fantasmas invisíveis.A Manuela fez de conta que era uma situação normal,como se eu tivesse tido uma branca de dez ou vinte horas,como se tivesse tudo acontecido de outra forma.Nós a sairmos da esplanada,um projecto de uma viagem a Roma,nos dias seguintes,o voo de avião,a estadia num hotel na capital,provável também o check-up,uma noite bem passada no dia em que chegamos,eu a passear até um museu enquanto ela dorme,a visita ao local das filmagens,e se calhar eu sugeri isso antes,e embora me pareça mais lógico,mais convincente,senti o vapor da dúvida durante o tempo todo.É que logo a seguir ela diz que quer tomar um banho na dita fonte.Eu conheço bem demais a Manuela,mas fui surpreendido pela decisão.A cena repete-se.Mas eu não sou o actor que contracena.Estou num limbo de medo e assombro.E algum fascínio.Porque agora vejo a Anita e não consigo ver a Manuela.E ouço a voz a convidar-me “tira a roupa,anda”,e entro na água.E apercebi-me de que era tudo real.E,se fosse sonho,era mais real que a própria realidade.Assustei-me porque me vi como se fosse o Marcello Mastroiani.Recordo todo este momento,agarro-me com força desesperada a este momento,leio e releio as frases,todas as palavras deste texto,sabendo o destino delas:o meu livro.Sei ter feito alguma pesquisa,os nomes das ruas,o hotel,referÊncias á cidade e ao realizador,era óbvio que teria de aproveitar as circunstancias.Ver-me ali num cenário mágico,um cenário criado no ano do meu nascimento.Penso nisso ainda hoje,enquanto vou adiantando páginas,enredos e acrescentando pormenores relevantes a fim de explicar a trama da história.E,onde colocaria eu,a minha heroína em toda a sequência?Tinha um plano prévio relacionado com a natureza da personagem.Ela vem de Oeiras,é já uma mulher feita.Vamos situar os primeiros acontecimentos em dias actuais,2012.Começarei a descrever de forma simples e breve,quem é esta figura.Dou-lhe nome e corpo,outras características virão com o avançar da história.Por exemplo ela anda em busca dos pais,que nunca conheceu e o desenvolvimento da minha história baseia-se no facto de que ela,simplesmente ,não tem pais,nunca teve pais e é um episódio cheio de tristeza e amargura aquele em que é revelada a verdade.Como reagirá a este peso?E não será ainda mais perturbante a própria verdade?Que decidi eu para Yasmin?Será este o seu nome,um nome que me vem á cabeça ainda não sei hoje porquê.Podia ser Cristina ou Ana ou Isabel.Podia ser Ingrid ou Teresa ou Manuela.Mas eu teimei logo de início em Yasmin.E pronto.Qual era afinal a origem de Yasmin?A minha ideia ao princípio consistia numa máquina ultra perfeita,género muito apetecido pelos ficcionistas de várias gerações,uma ideia,portanto já muito batida.Decidi ser um pouco original.Andava a ler uma história do Clifford Symac,uma obra de culto,”estação de trãnsito”.A ideia foi aproveitar uma personagem da história,dar-lhe uma consistência de ser vivo a partir de um brinquedo extraterrestre.Julgo que deveria funcionar.A parte de que eu falo tem a ver com a personagem Mary.Os cidadãos de outra galáxia visitam Enoch wallace e oferecem ao homem da Terra um artefacto mágico.O objecto tem o poder de dar vida a um boneco ou,neste caso,a uma boneca.E o nosso herói só tem que ir ássuas memórias buscar alguém que ele amou.Ou apenas dar corpo a uma imagem ou lembrança.Mas tem efeitos adversos.Mary não existe na mesma realidade de enoch wallace e o drama aniquila a paixão dos dois.Eu,pelo contrário,invento uma forma mais sedutora,mais prática,um artefacto natural,pleno de resultados positivos.Aqui não haverá falhas.Yasmin poderá até ter relações com umser humano.Terá vida própria.E o pormenor irreal da sua criação é o facto de surgir de uma boneca de porcelana.Depois de toda esta introdução,perguntamos:o que tem isto a ver com o meu caso de Oeiras-Roma,com o acontecimento ainda não esclarecido da minha aventura pessoal.Terá sido um simples sonho?ah,isto só irei revelar quando a Marie me enviar a carta que me prometeu,com o diário de Yasmin,o diário que ela escreveu durante a viagem aos confins do universo.Ela escreve um diário e o sonho é a realidade.um sonho no livro que nasce de um sonho.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

uma carta nova

A MODOS DE EXPLICAÇÃO

QUERIDO AMIGO,IRMÃO,PAI
Esta é a minha terceira carta.Mandei as duas primeiras onde falava de mim mesma e de assuntos relacionados com a natureza do meu nascimento e de tudo aquilo que eu queria saber dado que não chegaste a esclarecer os propósitos da minha criação e da minha transformação.Sou hoje uma mulher adulta,responsável,fiel aos meus ideais,fiel á minha missão,Mas permanecem dentro de mim,dúvidas que pretendo apagar porque tornam-se um peso insuportável.O que disseste de mim?que tiveste há um tempo atrás,um sonho.que tudo começou a partir de um sonho,que precisavas dividir-te em diferentes personagens porque era tua vontade ultrapassar um desafio importante em toda a tua vida,criares outros eus,inventares pessoas distintas de ti como autor,fazeres de nós outros tantos seres com um rosto e um corpo alheios,separados de ti.Criaste o Schuman,deste uma vida própria,um tempo e um espaço fora da tua realidade,vestiste o Schuman de aventureiro intrépido,corajoso.Algo frio e por vezes,amargo e ao mesmo tempo,uma figura terna e apaixonada.Por certo terás retirado de ti mesmo,algumas das características que são a sua identidade.E depois pegas neste personagem e colocas um cenário  de ficção,fazes ele viajar no futuro como tradutor de línguas alienígenas,como representante da Terra nas “Galáxias Unidas”.Fazes o Schuman percorrer uma estrada sem retorno,ao longo do universo,para além do desconhecido,tudo em busca de um livro.O curioso é aquilo que não dizes,aquilo que ele sente quando lhe determinas esse destino.Não se adivinha uma só queixa,ele parece estar disposto a essa empresa,arriscando a pele a qualquer momento,perdendo o norte e a p´ropria vida num planeta obscuro,eliminado por uma arma ou paralizado por uma bateria num recanto perdido no nenhures dentro da imensidão incomensurável.Ele parece gostar do papel que representa e assume o risco,com uma subtil vaidade.
Depois inventaste outro ser.Eu.Com uma configuração análoga,aparentemente desprovida de ti mesmo,já que deste a entender que sou ,além de personagem,um heterónimo.Adivinho o prazer que sentiste,que te inundou física e espiritualmente,ao inventares o teu primeiro heterónimo,definires a partir de uma boneca de porcelana,um eu tão impossivelmente quase real,quase outro ser humano.Admito com uma certa admiração,a jogada inteligente,para conseguir explicar como me torno um ser de carne e osso,um ser humano que,sabemos ambos,não sou.Falo das Pedras mágicas,provenientes  de Zaaar(um mundo que inventaste).Elas são o instrumento da minha transformação.Dás a essas pedras o poder de reconstituir um conjunto de células e átomos e um complexo de ADN,Inseridos num objecto inerte,um organismo isento de vida num ser vivo,inteligente,com memória,com reflexos,com emoções.EU.Acredito que foi  e ainda é,um desafio brutal,quase metafísico da tua parte congeminares a minha saída para a luz do dia.Fazes com que eu nasça em Paris,numa data imprecisa(este pormenor,devias desenvolver e o lugar onde nasci é uma lacuna imperdoável)e dás a mim mesma um corpo de mulher aí pelos vintes,a chegar aos trinta,cabelos escuros,uma cara redonda,olhos de um castanho vandyke,um corpo atirado para o forte,sem indícios de gordura.Programaste(ou introduziste)uma mulher culta,afável,de gestos suaves e andar elegante e donde vem tudo isso senão de ti mesmo ou da soma de coisas que quiseste minhas a partir de traços,vestígios de todas as mulheres que conheceste na tua vida.Ou,posso atrever-me,de algumas personagens reais,que te dizem qualquer coisa ou que te fascinam,uma voz(a voz da Ingrid Bergman),um certo jeito no olhar as pessoas(talvez alguém que amas ou já amaste),a forma do queixo…E porque me deste este nome,MARIE EAU D´ALAC?A conotação é implícita? O facto de teres feito que eu nascesse em Paris é suficiente?ou isso tem a ver com alguma ilusão a que te prendes,de um filme,um diálogo num livro que ficou marcado na memória,ou uma sequência de movimentos num passado distante?se calhar foi tudo isto junto,um somatório de experiências vividas e outras que terás desejado viver.peço desculpa o alongar da minha missiva,era importante,vital fazer esta introdução,é que preciso que tires um peso de mim,que não tem a ver comigo,é sobre a Yasmin.Desejo que compreendas aquilo que vem perturbando o meu descanso,a minha alma dói.Ela está longe.Incumbiste o grupo naquela missão dantesca,fatal,na busca de um livro.Para servir de pretexto no enredo do teu próprio livro.Creio que a Yasmin levará um certo tempo a perdoar-te.A ela já era difícil suportar a dúvida ,porque era apenas uma boneca de porcelana como eu,ainda por cima,não lhe dás tempo para se conhecer e envias um ser frágil,consciente contudo frágil,numa missão hostil,duvidosa e destruidora.Sim,porque até tu não tinhas a certeza do desfecho.Era uma questão de ir vogando ao sabor da imaginação.Faltavam determinados elementos de consulta,escasseavam as bases com as quais se determina uma narração coerente,simples,genuína.Por exemplo,eles chegam a um sistema solar na periferia de uma galáxia a 80 anos-luz ,distante da via láctea.Onde fica essa galáxia,em que quadrante do céu? Quais as características do planeta?a sua amplitude,a constituição geológica?Há pormenores a que um escritor não pode fugir.Embora isto seja tudo teu,deves ter cuidado.Devias proteger os personagens e encaixá-los numa história concisa e mais humana.Não é só a aventura,o enredo,tens de trabalhar o factor humano.Perdoa-me este desabafo de “filha”.Aceitarás as minhas críticas como decerto aceitas todo o meu carinho e admiração.Portanto ,tendo dito isto,vamos ao que interessa.Saí de Roma há cinco dias.Viajei na minha bolha do tempo e quero saber onde se encontra a minha irmã.Sei que é pedir-te demais,mas preciso absolutamente revê-la,conversarmos e conhecer melhor aquilo que destinaste á yasmin,tanto em personalidade como no rumo da vida.Estarás disposto a alterar os capítulos finais,afim de sairmos vivas,inteiras e porventuras felizes?Ou já desenhaste um futuro sombrio,indefinido e triste para cada uma de nós?é que ainda falta falar da nossa AKIKO.Por agora me despeço não sem acrescentar,que tomo-me nas tuas mãos e no teu coração.

Tua sempre  MARIE
P.S.Tenho outra coisa.gostava que me enviasses,se tal for possível,uma gravação da deutsch gramophone da peça do Mahler:das liede von der erde,que eu aprecio e me ajuda a relaxar.aqui em Praga(1865),não é possível encontrar.Percebes a razão.