O VIOLINO IRREQUIETO

Sunset on the meadows Watching the sun go down ~ Country LivingfoxyMisty SunriseO EPISÓDIO OEIRAS-ROMA by JOÃO PAULO CALADOMarie-Paule Deville-Chabrolle, 1952: Marie-Paule Deville-Chabrolle, 1952

A minha obra começou assim.Com um acontecimento que não sei explicar.Um fim de tarde na esplanada da marina de Oeiras.Estamos a gozar um momento de descanso com o cenário dos iates á nossa frente.Dá sempre a impressão de que nos movemos num ancoradouro ou no cais de um porto numa cidade estrangeira.Pedi um scotch.Puro.O meu ritual é sorver devagar,saborear a modos de construir um filme sem um fim próximo.Ela preferiu um irish coffee.A entornar.Para acompanhar,uma salada de queijo.Eu,por uma questão de hábito,trouxera um caderno de linhas.Manias.Fiz bem porque,olhando para trás,serviu-me de memória,algo parecido com a minha “reportagem do exterior”.Foi isso e outra coisa.Vamos admitir que criei nesse dia de muitos eventos e surpresas,umas a seguir ás outras,o universo de toda a minha obra.Como referi,estava a beber o meu scotch enquanto falávamos dos nossos projectos.A pintura,viagens,exposições.Lembro-me de ter sugerido mudar o meu estilo,usar um fundo cromático mais quente,e a ela,de libertar-se,procurando novas texturas.Não sei quanto tempo ficámos ali.Recordo-me que passados alguns instantes(tinha o meu copo meio cheio ainda),fiz um comentário sobre ter arrefecido e de olhar para o céu inundado de luzes.Una noite linda de primavera.Março.Sei, porque o meu irmão ia fazer anos no fim de semana.Ele convidou-nos a jantar.Só família.E a Manuela já tinha o  blusão vestido.A memória desses momentos torna-se vaga quando vou a levantar-me da mesa para me dirijir ao café para comprar cigarros.Ela deu-me trocos para o maço dela e depois encontramo-nos ambos numa ruela escura.Há um candeeiro daqueles antigos,a petróleo,a luz insinua-se nos ângulos do pavimento e rasga o contorno das sombras.Ouvem-se vozes a pequena distância.Em cima,numa janela.vozes numa língua conhecida.Italiano.Depois uma mulher passa por nós com um gatinho na cabeça.A cantar.Eu posso gabar-me de ter uma imaginação quase ilimitada.Afianço que esta coisa toda,apanhou-me em cheio.La Dulce vita.Fellini.Tive vontade de dizer á Manuela, que,virando na esquina á nossa esquerda íamos certamente dar com a fonte Di Trevi.A Famosa,inesquecível cena da fonte.A Anita Ekberg a banhar-se,a convidar o Marcello a fazer o mesmo…E a dúvida deu-me um soco.Senti uma vertigem,um movimento dentro de mim punha a questão primordial.Como vim aqui parar?Numa explosão silenciosa quedo-me inseguro e terrivelmente frágil,agorafóbico,tentando ao mesmo tempo,transmitir alguma segurança á Manuela.Achei,no entanto,que ela parecia natural,e nada disto afectou.Estava calma e ainda por cima,falou que podíamos procurar um café.Nada dava a entender que tivesse sentido da maneira que eu senti.Não fez alusão ao lugar nem á súbita mudança.Quis certificar-me das horas.Roma fica a uma dezenas de milhares de quilómetros de Lisboa.Meu Deus,a minha cabeça dançava uma dança louca,um maellstrom de perguntas sem resposta.O tempo a brincar conosco?Um fenómeno tipo poltergeist que nos transporta assim sem mais nem menos para outro lugar e para outro dia,num passado distante 52 anos?A Manuela encaixou a coincidência.O filme foi rodado no ano em que nasci.Uma obcessão minha,crescente,tomou-me de assalto e catalizou uma decisão em toda a minha vida.Mas isto não ficou por aqui.Disse que a Anita se cruzou conosco,é verdade,contudo a nossa presença não perturbou o instante.Ela ia toda concentrada a caminho da fonte,a cantar,o Marcello Mastroiani a chamá-la e nós,tal qual dois fantasmas invisíveis.A Manuela fez de conta que era uma situação normal,como se eu tivesse tido uma branca de dez ou vinte horas,como se tivesse tudo acontecido de outra forma.Nós a sairmos da esplanada,um projecto de uma viagem a Roma,nos dias seguintes,o voo de avião,a estadia num hotel na capital,provável também o check-up,uma noite bem passada no dia em que chegamos,eu a passear até um museu enquanto ela dorme,a visita ao local das filmagens,e se calhar eu sugeri isso antes,e embora me pareça mais lógico,mais convincente,senti o vapor da dúvida durante o tempo todo.É que logo a seguir ela diz que quer tomar um banho na dita fonte.Eu conheço bem demais a Manuela,mas fui surpreendido pela decisão.A cena repete-se.Mas eu não sou o actor que contracena.Estou num limbo de medo e assombro.E algum fascínio.Porque agora vejo a Anita e não consigo ver a Manuela.E ouço a voz a convidar-me “tira a roupa,anda”,e entro na água.E apercebi-me de que era tudo real.E,se fosse sonho,era mais real que a própria realidade.Assustei-me porque me vi como se fosse o Marcello Mastroiani.Recordo todo este momento,agarro-me com força desesperada a este momento,leio e releio as frases,todas as palavras deste texto,sabendo o destino delas:o meu livro.Sei ter feito alguma pesquisa,os nomes das ruas,o hotel,referÊncias á cidade e ao realizador,era óbvio que teria de aproveitar as circunstancias.Ver-me ali num cenário mágico,um cenário criado no ano do meu nascimento.Penso nisso ainda hoje,enquanto vou adiantando páginas,enredos e acrescentando pormenores relevantes a fim de explicar a trama da história.E,onde colocaria eu,a minha heroína em toda a sequência?Tinha um plano prévio relacionado com a natureza da personagem.Ela vem de Oeiras,é já uma mulher feita.Vamos situar os primeiros acontecimentos em dias actuais,2012.Começarei a descrever de forma simples e breve,quem é esta figura.Dou-lhe nome e corpo,outras características virão com o avançar da história.Por exemplo ela anda em busca dos pais,que nunca conheceu e o desenvolvimento da minha história baseia-se no facto de que ela,simplesmente ,não tem pais,nunca teve pais e é um episódio cheio de tristeza e amargura aquele em que é revelada a verdade.Como reagirá a este peso?E não será ainda mais perturbante a própria verdade?Que decidi eu para Yasmin?Será este o seu nome,um nome que me vem á cabeça ainda não sei hoje porquê.Podia ser Cristina ou Ana ou Isabel.Podia ser Ingrid ou Teresa ou Manuela.Mas eu teimei logo de início em Yasmin.E pronto.Qual era afinal a origem de Yasmin?A minha ideia ao princípio consistia numa máquina ultra perfeita,género muito apetecido pelos ficcionistas de várias gerações,uma ideia,portanto já muito batida.Decidi ser um pouco original.Andava a ler uma história do Clifford Symac,uma obra de culto,”estação de trãnsito”.A ideia foi aproveitar uma personagem da história,dar-lhe uma consistência de ser vivo a partir de um brinquedo extraterrestre.Julgo que deveria funcionar.A parte de que eu falo tem a ver com a personagem Mary.Os cidadãos de outra galáxia visitam Enoch wallace e oferecem ao homem da Terra um artefacto mágico.O objecto tem o poder de dar vida a um boneco ou,neste caso,a uma boneca.E o nosso herói só tem que ir ássuas memórias buscar alguém que ele amou.Ou apenas dar corpo a uma imagem ou lembrança.Mas tem efeitos adversos.Mary não existe na mesma realidade de enoch wallace e o drama aniquila a paixão dos dois.Eu,pelo contrário,invento uma forma mais sedutora,mais prática,um artefacto natural,pleno de resultados positivos.Aqui não haverá falhas.Yasmin poderá até ter relações com umser humano.Terá vida própria.E o pormenor irreal da sua criação é o facto de surgir de uma boneca de porcelana.Depois de toda esta introdução,perguntamos:o que tem isto a ver com o meu caso de Oeiras-Roma,com o acontecimento ainda não esclarecido da minha aventura pessoal.Terá sido um simples sonho?ah,isto só irei revelar quando a Marie me enviar a carta que me prometeu,com o diário de Yasmin,o diário que ela escreveu durante a viagem aos confins do universo.Ela escreve um diário e o sonho é a realidade.um sonho no livro que nasce de um sonho.

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