quinta-feira, 27 de novembro de 2014

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O Outono em Pequim, Boris Vian, Capa
A história de O Outono em Pequim, de Boris Vian, não é no Outono, e muito menos em Pequim, mas Boris Vian tem alguns dos títulos mais fantásticos, ou estrambóticos, palavra que a porcaria do corrector ortográfico não conhece, ou que nada têm que ver com o conteúdo, coisa que quem conheça a obra de Boris Vian sabe que tem a razão de ser em não haver razão de ser nenhuma. Também o título da obra de Boris Vian escolhida para este post não podia ser o mesmo que para o título do post.

Comprei este livro ao acaso (a minha edição não é a que está na imagem) quando nunca tinha ouvido falar do autor. É uma das coisas que me dá mais prazer: comprar livros ao acaso, de autores que não conheço; coisa que faço cada vez menos, porque por cada descoberta magnífica, maravilhosa, deslumbrante, e outros adjectivos elogiosos, pelo menos meia dúzia de volumes servem para ficar a encher as estantes de pó.


Comecei a lê-lo numa noite, nos tempos agora tão distantes da faculdade, em que insistiram para sair, e ficar em casa sozinho não me agradava. Nos bancos de um café primeiro, e nas escadas de uma igreja depois, os meus semi-ébrios colegas não entenderam porque me ria tanto, até que os efeitos do álcool os elucidou. A escrita de Boris Vian embriaga-nos - e como Charles Baudelaire aconselha, devemos andar sempre embriagados - com whiskey, amor, ou literatura. Pois, não é de cerveja, sexo, e pasquins de província que Baudelaire fala, mas as maravilhosas nuvens não deixam de passear pelo profundo azul do mar por causa disso. 

Não me recordo como começa, por onde passa, ou onde acaba O Outono em Pequim. Algures a caminho do meio de qualquer coisa, no trem da noite. Uma obra que nenhum amante de Literatura pode perder, ou será demasiado tarde para apanhar o comboio, o autocarro está avariado, os preços dos bilhetes de avião low cost estão cada vez mais high, e dinheiro para o gasóleo veio o governo confiscá-lo. Resta-nos comer papel.


Sentia-o junto à coxa, pesado e frio como um animal morto. O bolso e o cinto pendiam com o peso e, a camisa, do lado direito, tufava sobre as calças. O impermeável impedia que se visse, mas de cada vez que estendia a perna, o tecido ganhava um grande vinco e isso toda a gente notava. O mais sensato era seguir por outro caminho. (...) Chocou com um ciclista que dava a volta sem avisar. O pedal arrancou-lhe a dobra das calças e lacerou-lhe o tornozelo. Quando sentiu que ia cair, estendeu as mãos para a frente, ao mesmo tempo que soltava um grito de terror. Vieram ambos estatelar-se no hão enlameado. A pouca distância, havia um chui. Cláudio Leão livrara-se da bicicleta, mas o tornozelo doía-lhe horrivelmente. O ciclista tinha um pulso torcido e, com sangue a espirrar-lhe do nariz, insultava Cláudio e Cláudio começava a encher-se de cólera, o coração batia-lhe, sentia um calor descer-lhe pelas mãos ao passo que o sangue circulava optimamente, latejava no tornozelo e na coxa e levantava o tira-teimas a cada pulsação. Nisto, o ciclista lança-lhe o punho esquerdo à cara e Cláudio faz-se ainda mais pálido. Mergulha a mão no bolso, tira o tira-teimas. Dá-lhe vontade de rir, porque o ciclista balbucia e recua; sente um choque horrível na mão e o cacete do chui a baixar. O chui apanha o tira-teimas, agarra Cláudio pela gola.Cláudio já não sente nada na mão. Volta-se de repente, estende a perna direita, visa o baixo-ventre do chui que se dobra em dois e larga o tira-teimas. Cláudio, com um grunhido de prazer, corre a apanhá-lo, e descarrega-o em seguida cuidadosamente sobre o ciclista, que leva as mãos à cintura e senta-se devagarinho fazendo âââh... mesmo lá do fundo da garganta. O fumo dos dois cartuchos cheirava bem e Cláudio soprou no cano como vira fazer no cinema; voltou a meter o tira-teimas no bolso e deixou-se cair em cima do chui. Queria dormir.

Excerto de O Outono em Pequim, de Boris Vian.

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