O colibri albino
Éramos um casal com uma idade indefinida.tínhamos vivido á margem do tempo,sem limitações,sem medos.um de nós guardava barcos de papel nos lábios e borboletas no cabelo.o outro largava colibris albinos e uma fragrância subtil,leve ,de violoncelos de seda.éramos muito chegados uma vez que fizemos uma união debaixo do mar,rodeados de búzios,estrelas do mar e alguns seixos com o rosto da eternidade.havia sempre luz nos olhos dela.nos meus encontravam-se gatos a miar á lua,lágrimas silenciosas & segredos felinos,genuínos.
Éramos um e outro amando sem causa nem efeito,magicamente intensos na obra do amor.e por isso,quando chegávamos a um lugar onde não existia cor,logo ela estendia os seus braços pequeninos de boneca de porcelana e nasciam arco-íris nas flores que antes se liam a preto & branco ou cinzento-doentio.eu fascinado,seguia a dança de uma menina-mulher-fada e sentia-me contagiado pela sua pureza inata e pela capacidade inocente dela em construir sonho a partir do nada.hoje estou sozinho á beira do mar a observar o corpo das ondas,e a escutar o âmbar escondido no movimento da espuma.os dias são agora contados em tristeza profunda,em pedaços de memórias que se desvanecem tal qual um castelo de areia.procuro a voz das gaivotas,o canto das gaivotas é igual ao mármore frio de algumas estrelas.tem uma luz algo mortiça ,efémera e voraz.eu sentei-me na areia encostado a um barco,que não era certamente igual aos que ela guardava nos lábios e sabia ser cada dia um fim dos meus dias e procurei limitar-me a uma existência inerte porque já não tinha razões para ser quem sempre fui:um viajante-caçador de mundos no sonho dos outros e juntava os meus aos deles para sermos mais contra a corrente do rio feito de sombra.aquele rio que corre onde os homens nunca foram crianças.e eu vagueava,nadando com ossos fatigados com olhos desistentes,quase vazios,quase sem cor sobre o manto de areia e molhava os meus pés no tecido líquido do meu próprio lamento.as minhas lágrimas tornavam-se pedra.pedra gelada,agreste,de linhas duras & cortantes,eu era um punhal em praias do meu longe e do meu perto.um velho que deixa de acreditar.um pássaro também,antes aceso febril,alegre,forte e aventureiro e amante de coisas simples.
Ainda não era o fim de tudo.um gatinho enroscou-se insensato e feliz,á roda das minhas pernas.adivinhei uma chama a crepitar ,a brincar com os meus sentidos.esperei um sinal.que não veio.queria supor ser ela a redescobrir-se,a revelar-de de novo no seio do meu coração vítreo,já um pouco insensível,embora não de todo ausente…tive o maior medo de todos os medos:ir perdendo o rosto dela á medida dos dias passarem atraiçoando a nossa cumplicidade imortal,ir esquecendo,grão a grão,gomo a gomo,o sabor dela em mim.pois aquilo que nós éramos,eu sabia,podia apagar-se de um momento a outro,as mãos separarem-se,os corpos começarem a falar sem dizer o que sentíamos.e esse medo seria a dor das dores,o maior pesadelo que se pode imaginar.não ia deixar as coisas neste fio de pensamentos.teimei em chamar o seu nome,a ela que não precisava de ter nome.ela era e pronto.um ser belo,pleno,inocente,radiante.eu,por meu lado absorvia algo da noite cheia de luar.teimei em chamar a menina com braços de boneca de porcelana e fui vivendo sempre colado a uma parede húmida de dúvidas e receios,isolado dos outros animais.
Mas de vez em quando largava um pequeno,um pouco incandescente,colibri albino,nos lugares onde antes estivemos e por enquanto isto era suficiente.para ainda ir acreditando que existia a criança em mim.
by JOÃO PAULO CALADO (todos os direitos reservados)
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