QUERIDO
AMIGO,IRMÃO,PAI
Esta
é a minha terceira carta.Mandei as duas primeiras onde falava de mim mesma e de
assuntos relacionados com a natureza do meu nascimento e de tudo aquilo que eu
queria saber dado que não chegaste a esclarecer os propósitos da minha criação
e da minha transformação.Sou hoje uma mulher adulta,responsável,fiel aos meus
ideais,fiel á minha missão,Mas permanecem dentro de mim,dúvidas que pretendo
apagar porque tornam-se um peso insuportável.O que disseste de mim?que tiveste
há um tempo atrás,um sonho.que tudo começou a partir de um sonho,que precisavas
dividir-te em diferentes personagens porque era tua vontade ultrapassar um
desafio importante em toda a tua vida,criares outros eus,inventares pessoas
distintas de ti como autor,fazeres de nós outros tantos seres com um rosto e um
corpo alheios,separados de ti.Criaste o Schuman,deste uma vida própria,um tempo
e um espaço fora da tua realidade,vestiste o Schuman de aventureiro
intrépido,corajoso.Algo frio e por vezes,amargo e ao mesmo tempo,uma figura
terna e apaixonada.Por certo terás retirado de ti mesmo,algumas das
características que são a sua identidade.E depois pegas neste personagem e
colocas um cenário de ficção,fazes ele
viajar no futuro como tradutor de línguas alienígenas,como representante da
Terra nas “Galáxias Unidas”.Fazes o Schuman percorrer uma estrada sem
retorno,ao longo do universo,para além do desconhecido,tudo em busca de um
livro.O curioso é aquilo que não dizes,aquilo que ele sente quando lhe
determinas esse destino.Não se adivinha uma só queixa,ele parece estar disposto
a essa empresa,arriscando a pele a qualquer momento,perdendo o norte e a
p´ropria vida num planeta obscuro,eliminado por uma arma ou paralizado por uma
bateria num recanto perdido no nenhures dentro da imensidão incomensurável.Ele
parece gostar do papel que representa e assume o risco,com uma subtil vaidade.
Depois
inventaste outro ser.Eu.Com uma configuração análoga,aparentemente desprovida
de ti mesmo,já que deste a entender que sou ,além de personagem,um
heterónimo.Adivinho o prazer que sentiste,que te inundou física e
espiritualmente,ao inventares o teu primeiro heterónimo,definires a partir de
uma boneca de porcelana,um eu tão impossivelmente quase real,quase outro ser
humano.Admito com uma certa admiração,a jogada inteligente,para conseguir
explicar como me torno um ser de carne e osso,um ser humano que,sabemos
ambos,não sou.Falo das Pedras mágicas,provenientes de Zaaar(um mundo que inventaste).Elas são o
instrumento da minha transformação.Dás a essas pedras o poder de reconstituir
um conjunto de células e átomos e um complexo de ADN,Inseridos num objecto
inerte,um organismo isento de vida num ser vivo,inteligente,com memória,com
reflexos,com emoções.EU.Acredito que foi
e ainda é,um desafio brutal,quase metafísico da tua parte congeminares a
minha saída para a luz do dia.Fazes com que eu nasça em Paris,numa data
imprecisa(este pormenor,devias desenvolver e o lugar onde nasci é uma lacuna
imperdoável)e dás a mim mesma um corpo de mulher aí pelos vintes,a chegar aos
trinta,cabelos escuros,uma cara redonda,olhos de um castanho vandyke,um corpo
atirado para o forte,sem indícios de gordura.Programaste(ou introduziste)uma
mulher culta,afável,de gestos suaves e andar elegante e donde vem tudo isso
senão de ti mesmo ou da soma de coisas que quiseste minhas a partir de
traços,vestígios de todas as mulheres que conheceste na tua vida.Ou,posso
atrever-me,de algumas personagens reais,que te dizem qualquer coisa ou que te
fascinam,uma voz(a voz da Ingrid Bergman),um certo jeito no olhar as
pessoas(talvez alguém que amas ou já amaste),a forma do queixo…E porque me
deste este nome,MARIE EAU D´ALAC?A conotação é implícita? O facto de teres
feito que eu nascesse em Paris é suficiente?ou isso tem a ver com alguma ilusão
a que te prendes,de um filme,um diálogo num livro que ficou marcado na
memória,ou uma sequência de movimentos num passado distante?se calhar foi tudo
isto junto,um somatório de experiências vividas e outras que terás desejado
viver.peço desculpa o alongar da minha missiva,era importante,vital fazer esta
introdução,é que preciso que tires um peso de mim,que não tem a ver comigo,é
sobre a Yasmin.Desejo que compreendas aquilo que vem perturbando o meu
descanso,a minha alma dói.Ela está longe.Incumbiste o grupo naquela missão
dantesca,fatal,na busca de um livro.Para servir de pretexto no enredo do teu
próprio livro.Creio que a Yasmin levará um certo tempo a perdoar-te.A ela já
era difícil suportar a dúvida ,porque era apenas uma boneca de porcelana como
eu,ainda por cima,não lhe dás tempo para se conhecer e envias um ser
frágil,consciente contudo frágil,numa missão hostil,duvidosa e
destruidora.Sim,porque até tu não tinhas a certeza do desfecho.Era uma questão
de ir vogando ao sabor da imaginação.Faltavam determinados elementos de
consulta,escasseavam as bases com as quais se determina uma narração coerente,simples,genuína.Por
exemplo,eles chegam a um sistema solar na periferia de uma galáxia a 80
anos-luz ,distante da via láctea.Onde fica essa galáxia,em que quadrante do
céu? Quais as características do planeta?a sua amplitude,a constituição
geológica?Há pormenores a que um escritor não pode fugir.Embora isto seja tudo
teu,deves ter cuidado.Devias proteger os personagens e encaixá-los numa
história concisa e mais humana.Não é só a aventura,o enredo,tens de trabalhar o
factor humano.Perdoa-me este desabafo de “filha”.Aceitarás as minhas críticas
como decerto aceitas todo o meu carinho e admiração.Portanto ,tendo dito
isto,vamos ao que interessa.Saí de Roma há cinco dias.Viajei na minha bolha do
tempo e quero saber onde se encontra a minha irmã.Sei que é pedir-te demais,mas
preciso absolutamente revê-la,conversarmos e conhecer melhor aquilo que
destinaste á yasmin,tanto em personalidade como no rumo da vida.Estarás
disposto a alterar os capítulos finais,afim de sairmos vivas,inteiras e
porventuras felizes?Ou já desenhaste um futuro sombrio,indefinido e triste para
cada uma de nós?é que ainda falta falar da nossa AKIKO.Por agora me despeço não
sem acrescentar,que tomo-me nas tuas mãos e no teu coração.
Tua
sempre MARIE
P.S.Tenho
outra coisa.gostava que me enviasses,se tal for possível,uma gravação da
deutsch gramophone da peça do Mahler:das liede von der erde,que eu aprecio e me
ajuda a relaxar.aqui em Praga(1865),não é possível encontrar.Percebes a razão.
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